Autor: Adão Loureiro

  • Viagem Só de Ida

    Transcrição parcial do ficheiro de áudio: REC-422_SOL_HELIOSII [Classificado]
    Fonte: Unidade de registo de comunicações do fato EVA-07
    Orador identificado: Cmdr. Miguel Tavares
    Data estimada: [DATA INDETERMINADA]


    [Estática]

    Aqui é o comandante Miguel Tavares… Helios II… Se alguém estiver a ouvir isto… por favor, saibam que estou à deriva. Estou vivo. Por enquanto. Mas tragam ajuda, por favor.

    Estamos numa órbita instável à volta do Sol, a cerca de um milhão e meio de quilómetros, numa missão de monitorização das erupções solares. O Sol tem-se comportado de forma imprevisível. As erupções tornaram-se mais frequentes e violentas. A nossa missão era tentar compreender a origem desta anomalia e proteger a Terra do pior. A estação solar Helios II foi construída para isso — um posto avançado, uma sentinela silenciosa no fogo.

    Eu estava a fazer uma inspeção de rotina, a reparar um pequeno painel solar danificado pela radiação estelar, quando tudo mudou. Um impacto súbito, como um estrondo abafado dentro do meu peito. Senti o mundo partir-se. A estação desfez-se ao meio. O choque lançou-me para fora. Ainda estou agarrado ao cabo metálico de segurança — pelo menos, estive. O cabo aguentou até onde pôde, depois cedeu.

    Vi as duas metades da estação afastarem-se, como se uma faca invisível tivesse cortado a nossa casa em dois. As superfícies metálicas queimadas, deformadas, iluminadas por faíscas e destroços que flutuavam. Gritei, ou pensei ter gritado, mas não sei se alguém me ouviu. Não vejo ninguém. Devem estar mortos. Ou a dormir para sempre.

    Agora estou sozinho. À deriva no vazio do espaço. A girar lentamente com o meu fato danificado. O motor do sistema de propulsão está inoperacional. Não tenho controlo da minha trajetória. Sem propulsão, sem regresso.

    Tentei o rádio, insistentemente. Só recebo estática. Uma onda constante, fria, que me isola ainda mais. Por vezes, apenas para sentir que ainda há algo lá fora, perto de mim, tento contactar a estação, a Terra, quem quer que esteja por aí. Nada. Silêncio.

    O calor começou a aumentar, rápido. A proteção térmica do fato foi comprometida no impacto, e agora sinto o suor a escorrer pela minha cara. Um absurdo cruel, eu sei. Mas é real. Arde-me a pele por dentro, como fogo invisível. O fato sai derrotado na sua luta contra o espaço sideral.

    A minha cabeça lateja. Talvez por stress, talvez por falta de oxigénio. Sinto a consciência a vacilar, mas ainda não caí no abismo. Tenho de manter este registo. Se alguém o encontrar, por favor, que saiba o que aconteceu. Que não fomos simplesmente engolidos pelo vazio.

    Viemos para estudar as erupções solares — fenómeno que tem escalado de forma preocupante. Na Terra, as comunicações caíram, as redes apagaram-se, e milhões refugiaram-se em abrigos subterrâneos, com medo da radiação. A coligação mundial reagiu em sobressalto, construindo duas naves: a estação Helios II e uma nave maior, preparada para um êxodo interestelar, um plano desesperado de fuga da Terra se o Sol se tornasse uma ameaça insuperável.

    Fui escolhido por causa da minha experiência com física estelar. Mas também porque… não tinha ninguém à espera em casa. Nenhuma ligação forte. Ninguém para deixar para trás. Ou talvez… talvez porque me consideravam dispensável.

    Ninguém poderia prever isto. A destruição. O corte. Não foi um asteroide — não há nada nesta órbita. Um cometa deixaria um rasto claro. Isto foi diferente. Como se uma lâmina invisível tivesse passado por nós, fria e implacável. Ainda não sei o quê. Talvez nunca se descubra.

    O visor côncavo do fato indica níveis críticos de oxigénio. Um corte fino no braço esquerdo, próximo do comunicador, piora com o tempo. Ainda não penetrou a camada pressurizada, mas não vai durar muito. O tempo deixou de importar. Estou numa órbita decrescente, espiralando em direcção ao Sol. Devagar, mas certo.

    Tenho tentado calcular o tempo que me resta, mas os instrumentos falham com a radiação. Talvez uma hora. Talvez menos. É irónico: tudo se resume a tempo quando já não há mais tempo.

    Por vezes penso que a Terra nos lançou como pólen, sementes no cosmos. Tentamos criar vida noutro lugar, espalhar-nos como uma flor desesperada que semeia antes de morrer. Eu não germinarei. Mas talvez outros consigam.

    Tenho tido visões. Ou memórias. Não sei. Vi o rosto da minha mãe, ouvi a voz do meu irmão. Ambos morreram há anos. A mente prega partidas. Talvez o cérebro crie consolo para suavizar a dor.

    [Estática. Breve pausa. Som distante, quase inaudível: melodia intermitente]

    Ouvi música. Não sei de onde. Talvez da estação. Talvez da nave de evacuação. Talvez da minha cabeça. Mas por um instante, foi real.

    Uma melodia suave, um piano. Algo clássico, algo… humano. O som desapareceu tão rápido quanto apareceu. Mas ficou comigo. Ainda vibra cá dentro.

    O alarme de oxigénio apita. O calor é insuportável. Estou a arder por dentro. A pele cola-se ao fato. Os músculos pesam.

    O Sol já não é um ponto grande no céu. É um disco colossal, a dominar o meu campo de visão. Branco, vivo, enorme. Criador e destruidor.

    Venerámo-lo durante milénios, o dador de vida. Agora é o meu e nosso carrasco.

    Se este registo chegar a alguém, façam melhor. Protejam-se. A Terra ainda pode ser salva. Ou pelo menos… não repitam os nossos erros.

    A luz é tudo. O calor…

    Abraço-o.

    [Estática]

  • Irmandade dos Pecadores

    Não sou um santo, mas sou mais santo que outros.

    Não sou santo. Nunca e ninguém foi – somos todos irmãos. Mas talvez, entre tantas máscaras, tenha trilhado caminhos de esforço e sacrifício para não usar mais nenhuma — e isso, hoje, parece mais raro do que a própria virtude.

    Alimento em mim falhas, vícios e fragilidades. Há dias em que não luto contra mim. Por rendição e por cansaço. Há algo de intrinsecamente humano no fracasso — um espelho que, mesmo rachado e sujo, reflete-nos com mais verdade do que qualquer ideal polido.

    Também não sou um demónio. Nem um espectro à espreita da vulnerabilidade alheia. Há quem sorria com o corpo e esconda lâminas na alma. Quem se revista de moral aos domingos e negocie princípios à segunda-feira. Quem pregue o bem com os olhos cravados no proveito.

    Vivemos entre pecadores que julgam outros pecadores por pecarem de forma diferente. E nisso há uma ironia crua, quase cega, que nos atravessa a todos, na irmandade dos pecadores. Eu, ao menos, desisti de disfarçar — e pago, com usura popular, o preço dessa transparência.

    Há algo que me incomoda profundamente: os que rezam em voz alta e condenam em silêncio. Carregam terços e sentenças no mesmo bolso. Falam do perdão como se fosse propriedade privada; como se fosse um dom transmissível por superioridade moral.

    Eu creio que não. Quando erro, não me disfarço de arrependido modelo. Quando julgo, começo por mim. Sou, tristemente, o meu próprio juiz, júri e carrasco. E nem sempre sou justo nem o meu melhor amigo.

    Não, não sou um santo. Mas há santidades que assustam mais do que qualquer pecador.

    E se, no fim, houver de facto um tribunal — seja ele divino, terreno, ou uma amálgama imperfeita de ambos — espero que se balance isto: que deixei de mentir sobre quem sou. Ainda que, por vezes, continue a mentir para mim. Que no retrovisor baço que levo comigo, a imagem que regressa é a minha — imperfeita, mas honesta.

    Tropecei. Caí. Errei. E voltarei a errar. Por escolha, por fraqueza, por necessidade — não sei. Mas sempre tentando ser eu, e não o que o mundo esperava que eu fosse.

    Quem sou eu, afinal? Ainda não sei. Talvez erre para descobrir.

    Às vezes penso: e se conseguirmos ser apenas versões suportáveis dos nossos próprios defeitos? Vamos escondendo aqui, disfarçando ali. Aprendemos a dissimular o que em nós pulsa fora do compasso. Parte por sobrevivência. Parte por medo de sermos apedrejados — na praça ou no ecrã, tanto faz.

    Eu, por exemplo, aprendi a sorrir quando queria desaparecer. A dizer “sim” quando já tinha desistido. A ser cordial quando a alma gritava. Não era virtude — era instinto. Se me chamavam ponderado, era apenas porque disfarçava bem a tempestade.

    E escondem todos. Todos. O que se gaba de nunca ter traído talvez nunca tenha amado até doer. O que garante nunca ter mentido… mente agora. O mais perigoso nunca foi o pecador assumido — é o santo criado. Aquele que se ajoelha diante dos outros e esfola os seus iguais nas sombras.

    Vejo isso nos olhos. Na pressa em parecer puro. Porque ninguém é tão limpo sem esconder lama debaixo das unhas.

    Talvez — só talvez — eu esteja profundamente errado. Talvez esta lucidez seja apenas exaustão. Corpo jovem, espírito antigo. Talvez esta exigência comigo mesmo seja o espelho que enfrentei vezes demais… e que vezes demais derrotou-me.

    Pode ser. Não sei. Não nego. Talvez julgar seja, também, um modo de fugir daquilo que tememos reconhecer em nós.

    No fundo, sou apenas um homem com uma régua torta, a tentar medir um mundo desalinhado.

    E, mesmo assim, continuo a tentar.

    Não, não sou um santo. Mas ao menos, já não finjo mais que sou.


  • Se as palavras fossem silenciosas, ainda assim as ouviríamos?

    É curioso, não é?

    O que impele alguém a escrever, como se falar para o vazio pudesse, um dia, provocar eco. Exasperação. Não um aplauso, certamente que não — isso seria demasiado grandioso — mas simplesmente o reconhecimento de que outra voz, outro pensamento, parou por um instante, entre um deslizar distraído e um qualquer suspiro, para atentar.

    Este sítio não é um farol! É um fósforo aclarado num quarto que ainda não mergulhou, por completo, na obscuridade.

    O que aqui descobrirá — se tiver a paciência e a coragem de permanecer — é o lento desenrolar de pensamentos: reflexões sociais que não posam com imparcialidade, porque, no fundo, o que é a objetividade senão uma máscara que usamos para esconder a ferida?

    Encontrará também críticas literárias — não daquelas que se medem em estrelas, notas ou resumos apressados — mas daquelas que se aproximam devagar e murmuram: este livro inquietou-me, este fez-me lembrar um nome esquecido, este mentiu com elegância…

    E, quando tiver coragem bastante, talvez se depare com palavras minhas: ficções, memórias, ou devaneios — oferecidos como frutos ainda verdes, não maduros, mas irremediavelmente meus.

    Escrevo, não por acreditar que o mundo precise de mais palavras, mas porque preciso de lhes dar um lugar — e o fundo da mente é um triste fado. E se, por acaso, chegarem até si, uma palavra após a outra, sentarem-se ao seu lado por breves instantes, então o gesto terá valido a pena.

    Seja bem-vindo.

    — Adão Moreira Loureiro